
Independência Ucraniana e o Império Russo no século XXI
Imagine um Presidente Francês contemporâneo ordenar ao exército Francês que ocupe o Sarre alemão, e afirmar:
“A Alemanha é um projecto anti-Francês construída por autores britânicos” (…) “A Alemanha não existiu durante muito tempo! O Sarre é território Francês. E toda a Alemanha será parte da França — não existirá Alemanha.”
Isto é precisamente o que se passa nas relações Russo-Ucranianas. A primeira frase é uma citação directa do artigo de Putin “Sobre a União Histórica de Russos e Ucranianos”, publicada em Julho de 2021. Apenas troquei a Ucrânia pela Alemanha e a Rússia pela França para aproximar a mensagem ao contexto Europeu e ao Mundo. A segunda frase é uma declaração do vice-Presidente Pyotr Tolstoy do Estado Russo de Duma.
A guerra Russo-Ucraniana contemporânea começou em 2014 com a anexação Russa da Crimeia e subsequente ocupação das cidades de Donetsk e Lugansk no Leste da Ucrânia. A guerra de 2014 pode ser rastreado dúzias de anos até à destruição Russa do Estado Ucraniano em 1920, ao genocídio de Holodomor em 1932-1933 e, numa era anterior, ao massacre da capital Cossaco Ucraniana de Baturyn e da destruição do seu estado por forças Russas em 1709. Nem um livro deverá ser escrito (e muitos já o foram) de uma descrição exacta de relações Russo-Ucranianas.
Neste breve trabalho, explicarei apenas uma tese em particular; nomeadamente, a guerra contemporânea Russo-Ucraniana não é um conflito de interesses que possa ser resolvido através de conversações e compromissos, sendo um conflito existencial onde uma das partes deve mudar a sua própria natureza. Ou a Ucrânia deve abdicar ao seu direito à soberania e independência, ou a Rússia deve desistir das suas ambições seculares por um império e controlo sob a sua “esfera de influência”. Uma análise de pervasivas mensagens políticas — e de média — pelo governo russo, montada contra a soberania Ucraniana e pontos chave na sua história demonstra isto.
A Rússia ainda trata a Ucrânia como a sua colónia. Conversações são impossíveis até que Moscovo aprenda o diálogo entre iguais.
Extensiva monitorização dos media Russos demonstra que na segunda metade de 2021, a propaganda Russa mudou a narrativa sobre o Ocidente e a NATO se aproximarem demais à Rússia, para retratar a Ucrânia como “uma nação irmã escravizada pelo Ocidente” que a Rússia deveria agora “libertar”. É essencial que se realce que durante décadas, e certamente desta vez, todos os principais canais televisivos na Rússia são controlados pelo estado, e todos eles recitam a narrativa política oficial das autoridades.
Na forma de Putin pensar, uma invasão da Ucrânia não seria um ataque a um estado soberano, mas uma reclamação justificada da esfera de influência Russa das “políticas internacionais do Ocidente”. Esta lógica mal concebida, é ainda mais demonstrada pelas palavras do popular comentador político Russo Sergei Mikheev. Esforçou-se bastante para delinear para o seu público alvo Russo o porquê de ser tempo para os Eslavos de Este — liderados pela Rússia — iniciarem uma “guerra santa” contra o Ocidente. Não consegue acreditar que os Ucranianos tenham a sua própria vontade, dizendo que estão apenas a ser enganados e usados pelo Ocidente “como ovelhas”.
“De momento, observamos uma tentativa do ocidente para destruir o povo Eslávico Ortodoxo de Leste, ao qual Russos, Ucranianos e Bielorrussos pertencem. Esta destruição é liderada pelo Ocidente... Nesta situação, a Ucrânia contemporânea é apenas carne para canhão. Vocês [Ucranianos] são ovelhas que podem ser levadas [pelo Ocidente] a uma guerra com a Rússia... a sociedade Ocidental é baseada em engodos e destruição. Foi assim que alcançaram o sucesso.”
O ponto que quero realçar — abertamente expresso pelo artigo de Julho de Putin e reiterado no seu comunicado televisivo aos Russos a 21 de Fevereiro — é que para a liderança Russa não existe uma Ucrânia como parceiro igual:
“A Ucrânia é 'parte da nossa história [Russa]'” e “'vassalos' com os quais Moscovo não deverá negociar de todo.”
Uma Ucrânia independente significa o fim do “império” Russo. Portanto, uma Ucrânia independente é inaceitável para Putin.
Esta visão poderá ser estranha para o público europeu do século XXI, onde impérios com o ideal de ocupar outros países já não existem. No entanto, julgando pelo comportamento de Putin e pelas suas declarações, acredita que o estado Russo contemporâneo é essencialmente a continuação do Império Russo e não deve abdicar das suas ambições imperiais.
Os media ocidentais descrevem frequentemente a Ucrânia como “uma antiga república soviética.” Mas parafraseando o ensaísta Ucraniano Mykola Riabchuk: É bastante enganador negligenciar o impacto da História antiga do Império Russo na História Ucraniana e os seus atuais desenvolvimentos. De facto, enquanto a História da Ucrânia Soviética durou 70 anos, a luta Ucraniana contra o império Russo durou 200 anos. O atual conflito deverá ser visto primariamente pela perspectiva do imperialismo Russo, no qual a USSR compõe um período relativamente curto — mesmo sendo o mais sangrento.
Permitam-me providenciar alguns detalhes essenciais à perspectiva Ucraniana, embora apenas parte do cenário completo.
Não deve ser subestimado que o Império Russo apenas foi proclamado após a conquista da Ucrânia em 1708, que na altura era amplamente reconhecido estado Cossaco e um aliado do Rei da Suécia na Grande Guerra do Norte contra o regime czarista de Muscovy (Rússia histórica). Anteriormente sob a proteção conjunta da Commonwealth Polaco-Lituana e o Czarismo de Moscovo, o Cossaco Ucraniano tinha soberania de facto, com um poderoso exército e fortes relações internacionais, assim como a sua linguagem e cultura únicas.
Baturyn, a capital do estado Cossaco, era comparável no século XVIII a Kyiv, na altura. No entanto, nunca recuperou a sua posição após o horrível massacre levado a cabo por Muscovy em 1708. Forças Moscovitas (Russas) massacraram todos os 15,000 habitantes, incluindo mulheres e crianças, e queimaram a cidade por completo. Entre 1995 e 2021, arqueologistas exploraram mais de 5,000 metros quadrados de território em Baturyn. As suas descobertas corroboram completamente a informação de documentos históricos que registaram a chacina destes civis.
A destruição da capital Cossaco (Ucraniana), o maior armazenamento de arsenal militar e comida na Ucrânia — os quais eram essenciais para o Rei da Suécia — permitiram à Rússia derrotar a Suécia na Batalha de Poltava em 1709. Esta foi uma batalha que mudou o curso da Grande Guerra do Norte e consolidou o lugar da Rússia entre os grandes poderes da Europa.
Após uma maior conquista da Ucrânia por Moscovy trouxe-lhes acesso ao portos do Mar Negro e às ricas colheitas da Ucrânia, assim assegurando o poder económico de Moscovo. Controlo destes mesmos portos e colheitas são os mesmos objectivos da Rússia hoje. Asseguraria a sua dominância na oferta de comida na Europa, juntamente com a sua dominância na área do gás e petróleo.
De uma perspectiva simbólica, a história da origem do Império Russo foi influenciada pela narrativa Eslava claramente formulada no século XIX, que enfatizava uma alegada união das nações Eslavas; assim como a versão Russa de união de Ucranianos e Bielorrussos, ostensivamente lideradas pela Rússia. Esta narrativa está ainda hoje no centro do chauvinismo Russo.
Kyiv, que é agora a capital da Ucrânia, era retratada como “a mãe das cidades Russas”, porque era a capital de um estado Eslávico de Este no reino medieval da Rússia de Kyiv. Foi do poder de Rússia de Kyiv que a Rússia adotou o nome quando o Império Russo foi oficialmente proclamado por Pedro o Grande em 1721,
Hoje, com a Independência Ucraniana, a narrativa Russa colapsa. Aquela antiga capital Eslávica de Kyiv está agora para lá das fronteiras Russas — num país completamente diferente. Os livros históricos Ucranianos, assim como os Russos, tratam Kyiv da Rússia como o seu país-origem, mas a verdade é que Kyiv está na Ucrânia e que Moscovo apenas foi fundada no século XII, vários séculos após Kyiv.
Isto é uma pesada ameaça à significância simbólica de Moscovo, tornando-a um esboço do mapa mental Eslavo. É por isto que uma Ucrânia independente ameaça a noção de um Império Russo, tanto geopolítico como simbolicamente. E é por isto que a Ucrânia é uma ameaça existencial para a Rússia contemporânea.
Alguns liberais Russos, como Andrey Zubov, defendem uma alternativa liberal para a Rússia, afirmando que a maioria de jovens Russos apoia esta visão. No entanto, o governo atual de Putin continua a conduzir políticas imperiais e vê a Ucrânia Independente como uma ameaça. Recentemente, a polícia de Putin nem hesitou em prender os poucos indivíduos que protestaram nas ruas de Moscovo, a 20 de Fevereiro, com cartazes nos quais se lia “Não à guerra na Ucrânia”.
Os Russos devem reconhecer os seus crimes contra a humanidade, seguindo o exemplo da Alemanha e demonstrando-se preparados para conversações.
Outro ponto chave é que a USSR foi criada após a destruição da república livre Ucraniana de 1917-1920. Embora a sociedade na altura tivesse diferentes visões políticas, incluindo socialistas e comunistas, milhares de revoltas populares seguiram-se nos anos 20, após a derrota da República Ucraniana pelos Bolcheviques Russos, não querendo participar nas plantações colectivas. Estas revoltas finalmente acabaram pelo Holodomor, ou “morte-por-fome”. A fome artificial induzida por Estaline reclamou pelo menos quatro milhões de vidas de Ucranianos no inverno de 1932-1933. Todas as reservas de comida e grão foram forçosamente retiradas aos habitantes das aldeias e vendidas ao estrangeiro em volumes recorde. Sem comida, milhões de pessoas não sobreviveram ao inverno duro. O que mais quero realçar é que a adesão da Ucrânia à USSR não foi voluntária mas sim subsumida, ou melhor, conquistada.
O terrível crime de Holodomor impossibilita a relação amistosa Russo-Ucraniana, pelo menos até um pedido formal de desculpas por parte da Rússia, seguindo o exemplo da Alemanha com os nazis. Pelo contrário, temos autoridades Russas a falar sobre a “não-existência dos Ucranianos.”
Estes assuntos merecem uma abordagem mais compreensiva, em inglês e outras línguas. Embora alguns estudos mais recentes por historiadores e académicos formados tenham sido publicados, a inclusão vasta em livros escolares e reconhecimento nos media globais ainda está em falta.
Para membros da UE, especialmente a França e a Alemanha, muitas vezes parece estranho que Ucranianos e Russos não se possam simplesmente sentar a uma mesa de negociações e encontrar reconciliação mútua.
Gostaria de responder através das palavras de Hannes Adomeit, cientista político Alemão no Instituto para as políticas de Segurança na Universidade de Kiel, que disse:
“Esta ideia [de mútua reconciliação] funcionou com a França [após a Segunda Guerra Mundial] porque foi apoiada por ambos os lados, pelo governo Francês [e Alemão]. O princípio desta reconciliação é correcto se tivermos ambas as partes a puxarem para o mesmo lado. Mas se tivermos uma das partes a puxar para uma direção e a outra a puxar na direção oposta, então é claro que não poderá resultar.”
O presidente Ucraniano Volodymyr Zelensky propôs encontrar-se com Putin inúmeras vezes, mas a Rússia rejeitou sempre, afirmando que é incerto o objectivo que o presidente Ucraniano queria atingir — significando que a Ucrânia precisava de primeiro aceitar as exigências Russas em relação à autonomia dos territórios de Donbass, ocupados pela Rússia.
Apenas ações militares de desencorajamento preventivas podem ajudar a lidar com a lógica Russa da força e prevenir a guerra.
Em 1946, George Kennan, o responsável Americano de assuntos em Moscovo entregou esta missiva no seu extenso telegrama:
“[O poder de Moscovo] não toma riscos desnecessários. Imune a lógica ou razão, é altamente sensível à lógica da força. Por esta razão, pode facilmente retirar — e normalmente fá-lo quando resistência forte é encontrada em qualquer ponto. Se o adversário tem força suficiente e torna clara a sua intenção de a usar, raramente tem de o fazer.”
Pouco mudou na era moderna das políticas de Putin. Para o provar, temos apenas de analisar as declarações políticas do Kremlin — sempre foram meios para fins militares e expansão de controlo territorial.
Outra prova clara das políticas do Kremlin está na sua obstante decepção e denegrimento de vidas humanas de forma a aumentar o seu desejado efeito militar. É agora rotina para soldados Russos esconderem artilharia entre habitações de civis e dispararem contra soldados Ucranianos de forma a provocar uma resposta, para depois acusarem o exército Ucraniano de “criar um genocídio em Donbas.” O mais recente exemplo é a “evacuação” de civis do território ocupado pelos Russos de Donbass, iniciado a 18 de Fevereiro, de forma a criar pânico e um espectáculo para os media de que os territórios ocupados se estão a preparar para uma alegada ofensiva Ucraniana — que a Ucrânia não pode nem quer fazer. Esta evacuação foi combinada com explosões fabricadas de forma a criar ansiedade, e criar uma vontade de lutar entre a população Russa.
No entanto, tais políticas não são uma surpresa quando nos lembramos das tropas de barreira especiais no Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial, que não eram usadas para lutar contra o inimigo, mas para ir atrás do exército soviético e atirar sobre qualquer um que tentasse retirar. Outro exemplo histórico que o governo nega, mas que é muito provavelmente verdade, são os aparentes bombardeamentos Russos em 1999 que mataram 367 pessoas. Foram muito provavelmente organizados pelo FSB Russo para acusar “terroristas Chechenos” e criar uma desculpa para a invasão da Chechênia. Alexandr Litvinenko foi o primeiro a escrever sobre isto e foi envenenado fatalmente pelo FSB Russo. A história é devidamente analisada no livro de David Satter Quanto menos souberes, melhor dormes: O caminho da Rússia para o terror e ditadorismo sob Yeltsin e Putin.
Na Ucrânia contemporânea, também é rotina para ocupadores Russos tanto em Donbass como na Crimeia capturarem civis e torturá-los com eletrocussão e espancamentos apenas por expressarem sentimentos políticos pró-Ucranianos — tão inofensivamente como num post de Facebook. Tal prisão ilegal é descrita em detalhe pelo jornalista Ucraniano e antigo prisioneiro dos ocupadores, Stanislav Aseyev no seu memorial O campo de Tortura na Rua Paraíso, centrado na infamosa prisão ilegal Izolyatsia no território ocupado de Donbas.
E finalmente, no seu exemplo mais recente, a história do preso político Oleh Prykhodko, publicada por Yevhen Chepelianskyi, em 19 de Janeiro de 2022:
Em cativeiro desde Outubro de 2019, Oleh foi torturado com electricidade durante dias, encharcado em água gelada; algemado durante horas com os braços torcidos atrás das costas. É mantido em confinamento solitário sem uma cama. Estando doente, este homem de 64 anos deve ficar de pé no cimento frio durante todo o dia... Este homem está num estado de saúde lastimoso, mas não lhe é dado qualquer tratamento. Os seus rins vão falhar em breve, e tem dores terríveis no seu sistema urinário. Com um sorriso hipócrita, os “médicos” da prisão dizem que “está tudo bem”. Oleh é torturado devido à sua posição na Ucrânia... Hoje requerem-lhe que renuncie à sua ideologia, que escreva o que lhe é dito. A filha de Oleh viu a sua condição terrível. Estava muito inchado. “Estou a ser morto, não irei sobreviver” disse-lhe Oleh. “Eles não te vão entregar o meu corpo.”
Os Ucranianos sabem muito bem o que lhes espera caso permitam uma ocupação Russa. Existem lições suficientes na história e na realidade contemporânea. É por isto que eles estão prontos para lutar pelo seu estado. Demonstram-no diariamente no fogo-pesado e sacrifício. Só em Kyiv, nas primeiras 24 horas após o início das agressões, 18.000 voluntários aderiram à defesa territorial e receberam armas para defender a cidade.
Mas ainda existe uma forma de acabar a guerra com mínimas baixas tal como o “império” chauvinista Russo. Essa forma consiste em demonstrar a força do Ocidente, de acordo com a recomendação de George Kennan, para forçar as forças militares Russas a retirar. Se a Rússia encontra forte pressão internacional e militar, então estará destinada à decadência como um império auto-imaginado e fica sujeito a uma transformação interna em direção a um estado livre.
Sabíamos que as nossas forças militares eram fortes mas agora eles estão a agir melhor do que o esperado! Ainda assim, precisamos de bastante suporte para ganhar esta guerra com mínimas baixas humanas.